terça-feira, 24 de maio de 2016

Um pouco sobre o Ás de Espadas. Ou: a cultura interfere no baralho.


Uma das minhas preocupações no estudo da Cartomancia são suas peculiaridades e idiossincrasias. Embora seja possível, a partir de um conjunto de conceitos específico, utilizar qualquer baralho, existe uma tradição e um mecanismo próprios para cada baralho que abordamos. E são esses... Detalhes, por assim dizer, que fazem toda a diferença na hora da leitura e no uso oracular de um conjunto de cartas.
Não é raro vermos na literatura cartomântica o uso das cartas comuns conforme a estrutura proposta para o Tarô. Podemos remeter esse fato a Papus, que se utilizou da estrutura proposta por Etteilla, dando forma aos seus estudos tarológicos; entretanto, conforme podemos observar, poucos dão crédito atualmente a Papus; a estrutura proposta pela Golden Dawn é a referência básica no estudo do Tarô, o que torna a anterior razoavelmente obsoleta.
É o uso, a memória em ação, que faz um sistema funcionar, não sua antiguidade. O esquecimento também faz parte do processo de evolução de um sistema como o Tarô. Embora possamos conhecer Papus, Wirth, Marteau, dificilmente encontraremos diálogos atuais com suas propostas. Com maior raridade, encontraremos quem use seus sistemas com sucesso. 
Em relação às demais estruturas cartomânticas - e cá falo dos baralhos sibilinos, as cartas de conversação (Petit e Grand Jeu Lenormand; Sibillas italianas e francesas; Kipper), há que se ter um certo cuidado nesse processo de diálogo. Se o próprio Tarô não dialoga com facilidade com sua fortuna crítica, abordar outras estruturas com sua proposta não é terreno seguro de caminhar em pesquisa, que posso dizer em relação à prática? Não é a proposta desse artigo comparar cartomancias, mas é necessário, à guisa de introdução, deixar bem claro que o que vou dizer não é aplicável a todas elas. É um referente cultural que, se possui referência na cartomancia, não posso dizer; mas que afeta, visceralmente, o olhar proposto sobre a mesma.
A Cartomancia constrói-se e mantem-se sob uma estrutura cultural e ideológica que está ligada aos usos, costumes, fazeres e saberes de um determinado povo. Embora os símbolos sejam praticamente os mesmos - especificamente em relação ao baralho comum, o padrão internacional se mostra com os mesmos signos - a interpretação variará em função não só dos sucessos de seus respectivos cartomantes, mas também naquilo que a cultura popular trará como certo, como referente. 
Por isso, observar o Ás de Espadas na cultura popular interfere, e muito, naquilo que proponho como fator interpretativo. Não encontraremos, em todos os baralhos, referências àquilo que é lugar comum na arte e na cultura: o Ás de Espadas é sinal de mau agouro, de morte. 


Estava assistindo o episódio 05 de Cowboy Beebop e o Ás de Espadas foi a carta que mais apareceu, sempre relacionado à morte. Constantine, em Hellblazer, afirma ter cortado o baralho perto demais do Ás de Espadas quando escapa por um triz da morte. Temos baralhos que tem, na impressão do Ás, a caveira - não em seu aspecto pathos de vanitas, mas no sentido de morte.
Isso me levou a refletir sobre de que forma os sentidos se revelam para as cartas. Eles não são preexistentes; mesmo nos baralhos recentes, criados com fins notadamente adivinhatórios, sua base é o uso, o costume, a tradição por assim dizer. Você não encontrará a morte em Copas; isso é certo. O coração, seu signo tradicional, não dialoga diretamente com o sentido de perda, excetuando-se a afetiva. 
Entretanto, Espadas é por excelência o naipe maldito, à despeito dos esforços em qualificá-lo. Sempre tarologicamente, à propósito. Naipe do Ar, naipe da mente, naipe dos esforços intelectuais - uma relação quaternária que propõe que hajam sim aspectos luminosos em suas cartas. Suas cores sombrias - naipe noir por excelência - são substituídas pelo amarelo do elemento correspondente. E, aparentemente, se torna mais prazeroso tirar uma de suas cartas.
Nos baralhos que assim transitam entre a proposta tarológica e a cartomancia com as cartas comuns (e aqui temos um problema conceitual: haveria um termo específico para a cartomancia com as cartas comuns? Seria ela a cartomancia por excelência, pela falta de conceito que a referencie especificamente?), o naipe de Espadas permanece amarelo, mas referente ao inverno. Seco e frio, enquanto estação do ano; úmido e quente, enquanto elemento. Temos um problema dialético. 
Entretanto, na cultura popular, pouco ou nada difere. Espadas não são para brincadeira, e o Ás é síntese e clímax do referencial teórico. Se o naipe em si não é boa coisa, pior se mostra retirar a carta que lhe é de maior valor. Nessa carta, vemos aquilo que é o fim de todos os viventes. Não questiono aqui a existência de uma pós vida, ou a emblemática interpretação de que a morte de algo dá início a algo novo. Essa perspectiva inexiste no que temos de cultural sobre o Ás de Espadas e sobre a morte, seu significado. A releitura desse conceito não pertence a esse olhar específico, o do leigo.
Vejo pois, necessário o olhar sobre o contexto que permeia a carta no fazer cultural. Ainda que haja quem ache desnecessário o olhar historiográfico ou literário sobre o assunto, o domínio desses setores permite o livre trânsito simbólico entre uma e outra possibilidade. Caso contrário, todo baralho é propício ao uso - inclusive baralhos de nomes pomposos, arte medíocre e funcionamento questionável. Não é o baralho, mas a leitura. Tal seria como se abrisse um livro e, ao invés de lê-lo, contasse uma história de minha cabeça: para quê a ferramenta, se não mise-en-scène?
Esse é um primeiro momento, um incômodo de leitor. Uma pesquisa se descortina a respeito - em algum momento, mais sobre o Ás de Espadas. Por ora, só a observação que os conceitos pertinentes à carta são singulares em cada baralho que se utiliza dos naipes (Raiz dos Poderes do Ar, na leitura da Golden Dawn aplicada ao Tarô; a Veemência, no Tarô Egípcio da Editora Kier; A Carta Testemunha 29, a Mulher, no Petit Lenormand; Desgosto, nos Sibillas italianos; Rendez-vous, no Petit Cartomancien; Retard, no Sibilla Indovina, entre outros) não se aplica, sobremaneira, à forma como o Ás de Espadas é visto normalmente: um mau agouro, ou uma forte aposta.
Sigo observando.

Abraços a todos.

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